Desde a antiguidade clássica que certas representações tiveram o condão de reter e dispor os signos cardinais do fenómeno melancólico apresentando, de modo explícito ou latente, as causas, os sintomas e o contexto sociopolítico da emergência dessa condição. Os trabalhos de recolha e interpretação das representações da melancolia empreendidos por J. Clair (2005) e H. Prigent (2005) deram um impulso decisivo para compreender como a articulação entre a história social e conceptual se reflete nos meios figurativos. Mais do que transpor para a linguagem pictórica a diversidade de signos da semiologia médica ou da fisiognomonia, o medium artístico tornou-se uma fonte expressiva dos padecimentos e inquietações da melancolia, mas também proponente da sua “resolução estética” (M-C. Lambotte: 1999, 2012). As interpretações de alguns desses objectos artísticos, sobretudo da Renascença, se tornaram incontornáveis. Elas permitiram, como ocorre no célebre deciframento de Melancholia I proposto por autores como A. Warburg (1905) ou E. Panofski (1943), expor o estreito vínculo entre a singular “visão” do artista, tendo em conta as vicissitudes de sua biografia, e os temas-veio já constituídos nos discursos médico, amoroso, político e religioso. Noutros casos, estudam a estreita articulação entre as formas literárias, inclusive as mobilizadas para efeitos terapêuticos, através de sugestões e prescrições, como ocorre na Anatomy of Melancholy de Burton, como guia da composição de símbolos pictóricos (Wagner-Egelhaaf: 1997; Starobinski: 2012). J. Pigeaud (1995) mostrou que tais composições, parecendo inverter a via da ekphrasis, remontam à aurora da criação poética, solicitando o figurativo como fonte sempre instável de consolo e apaziguamento.
Uma linha de investigação mais recente vem salientando o íntimo vinculo entre a história da arte e a melancolia. M. A. Holy (2013) notou como a procura do sentido e dos usos originais de uma determinada obra de arte, bem como das recepções da mesma, é consonante com a disposição melancólica. Evidenciou aquele autor que essa mesma perda irremediável ao invés votar à depressão deve considerar-se a fonte da redescoberta e revivificação das obras.
No presente seminário exploramos três grandes vectores da estética da melancolia. Primeiramente, atendemos ao modo como o meio artístico forjou uma linguagem própria para expressar o fenómeno da melancolia, retroagindo tanto no processo de auto-reconhecimento como na identificação e caracterização daquela condição. Por outro lado, mostramos como a iconografia nunca está inteiramente desvinculada da vivência melancólica, tendo em conta as suas especificidades sensória, cognitiva e comportamental na composição e recepção de tais representações. Finalmente veremos de que modo a imagem, em particular a iconográfica, foi explicitamente utilizada como meio terapêutico. Enquanto “objectos estéticos” que interpelam a imaginação, determinadas pinturas, gravuras e frontispícios incitam a imaginação melancólica a recriar novos relevos numa realidade que o próprio padecimento tornou chã e inerte.
A exposição adoptada neste seminário segue a sequência cronológica, permitindo atender à inscrição da melancolia em condições sócio-históricas diferenciadas (Steinebrunner 1987). Ainda assim, deve assinalar-se a considerável unidade do typus melancholicus, reflectida justamente na recorrência de traços icónicos, comportando referências mitológicas, a ordem dos astros, os ciclos naturais e as idades, mas também relativos à situação, à postura e à expressão da persona melancólica.
No mundo antigo a melancolia emerge na dualidade entre compleição e patologia, como disposição propícia aos grandes feitos mas também à depressão. Reflexo da gradual transição de um questionamento cosmológico para a especificidade da natureza humana, a melancolia surge nos escritos médicos e filosóficos, como ilustração da dualidade entre determinismo e liberdade. Suas representações dominantes são as da sepultura, do herói trágico e das próprias representações da clínica. Demarcada da redução fisiológica, na acedia vêm a congregar-se alguns dos padecimentos associados à melancolia, mas agora remetendo a aspectos morais e espirituais. As representações dominantes serão as da tentação, da ânsia e da perseverança ascética. Na transição para a modernidade a melancolia perde seus contornos fisiológicos, torna-se um símbolo passível de apropriação e reprodução, como condição que, em sua face generosa, dispõe à contemplação, à serenidade e à criação. Se, do ponto de vista epistémico, a época moderna se fundamenta através da regulação e repressão imaginação melancólica, denunciadora da perda da antiga cosmovisão, ela ressurge primeiramente nas figuras do satírico e do génio, mas também nos fenómenos do tédio e da depressão. Em tais figuras subsiste a articulação com o medium terapêutico, integrando elementos das novas propostas de cuidado e tratamento da doença mental.
Organização:
Cláudio Alexandre S. Carvalho
Research Group Aesthetics, Politics and Knowledge
Instituto de Filosofia da Universidade do Porto - FIL/00502