Life is short and the history of philosophy
is growing longer every year.
E. Gilson, History of Christian Philosophy
in the Middle Ages, New York 1955, p. 544.
A Filosofia Medieval está presente em todos os ciclos de estudos Em 2007-2008 na FLUP entrou em vigor um plano curricular da Licenciatura em Filosofia que faz a adequação ao espaço europeu do Ensino Superior, tendo a duração de 3 anos (180 UC) a que se segue o Mestrado em Filosofia, com a duração de 2 anos (120 UC). A Filosofia Medieval tem na ?Licenciatura (1º ciclo) um espaço idêntico ao dos outros três períodos da história da Filosofia, com duas unidades curriculares no 2º ano: Filosofia Medieval I e Filosofia Medieval II. No plano de estudos do Mestrado (2º ciclo) a Filosofia Medieval é uma das áras de especialização. No Programa doutoral em Filosofia a Filosofia Medieval também está presente com uma unidade curricular.
Os planos de estudos dos 3 ciclos, a distribuição de carga horária lectiva, o contacto tutorial e o trabalho pessoal do estudante, introduzem amplas modificações no ambiente de ensino e de estudo, com um lugar muito mais amplo para a dedicação e a intervenção do estudante na sua própria formação. Não sendo possível antecipar todos os constrangimentos práticos, com este contributo pretende-se favorecer uma orientação para a aprendizagem autónoma. Para além de apresentar um programa, a descrição sumária dos seus conteúdos e a indicação dos métodos de ensino, o Relatório pretende também fundamentar as orientações e as opções metodológicas retidas no programa e na sua leccionação, alicerçadas no conhecimento da bibliografia activa e passiva deste domínio dos estudos filosóficos, que também se apresenta de modo detalhado mas não exaustivo no final.
É de uma visão integradora das especificidades da Filosofia Medieval (cfr. § 1.2) , do seu lugar na progressão do estudante de Filosofia, da disponibilidade de recursos, da inserção da disciplina nas práticas académicas do Departamento (cfr. § 1.1), das orientações metodológicas (§ 1.3), que resultam estas perspetivas didáctico-pedagógicas, que têm como seu centro um programa em larga medida modificável substituição de temas em cada ano. Nas diferentes páginas deste sítio sistematiza-se uma ampla panóplia de instrumentos de trabalho de grande diversidade, como não podia deixar de ser para um objecto de estudo também tão diversificado como o é a Idade Média e as filosofias que durante esse período foram pensadas e se desenvolveram.
A semestralização da licenciatura, introduzida na FLUP a partir do ano lectivo de 2001-2002 (a Resolução 140/2001, DR, 2ª série, de 26 de Novembro de 2001, contém o «Regulamento» da Licenciatura e o Aviso nº 14761/2001 do DR, 2ª série, de 6 de Dezembro de 2001, contém o «Plano curricular»), criou as disciplinas de Filosofia Medieval I e Filosofia Medieval II em substituição da disciplina anual de Filosofia Medieval, existente nos anteriores planos de estudos. Passando então a haver no final do primeiro semestre um terminus, quando antes existia apenas uma etapa de avaliação, introduziram-se as necessárias alterações na estrutura de conteúdos, na prática didáctico-pedagógica e na avaliação. Sendo apenas possível apresentar aqui o relatório de uma disciplina, convém ter presente que Filosofia Medieval I constitui sobretudo o gradus inicial de uma formação que prosseguirá em Filosofia Medieval II, a qual, dependendo das opções do estudantes, se pode prolongar nos seminários oferecidos pela pós-graduação na área da Filosofia Medieval e mesmo, ocasionalmente, em disciplinas de opção na Licenciatura (como aconteceu em 2003-2004, quando funcionou a disciplina de Ética e Política no Pensamento Medieval).
Havendo na licenciatura uma sequência de duas disciplinas de Filosofia Medieval, a primeira questão a resolver é a da distribuição dos conteúdos pelos dois semestres. A opção actual não foi a de fazer uma divisão cronológica da Idade Média entre os dois semestres, mas sim oferecer duas diferentes abordagens, complementares e integradas, deste longo período da História da Filosofia. Pretende-se, assim, que o contacto dos estudantes não se limite à apreensão de séries cronológicas de autores e épocas, mas que tenham a oportunidade de regressar a eles em sucessivas aproximações de aprofundamento. Por exemplo, Agostinho, Boécio, Abelardo, Tomás de Aquino podem ser estudados nas primeiras partes de Filosofia Medieval I nas abordagens breves e ilustrativas das relações fé-razão, ou dos modos como se escrevia e discutia filosofia, para depois serem estudados com base em textos mais longos em temas como o ser, ou o conhecimento, ou a felicidade, para em Filosofia Medieval II serem estudados já num curso monográfico, que pode ser sobre a ética, ou sobre a política, ou sobre a acção, ou sobre o conhecimento, dependendo do programa proposto para cada ano.
Procura-se com esta organização potenciar a vantagem pedagógica e científica que resulta do facto de se fazer uma abordagem progressiva da Filosofia Medieval, regressando a autores e temas em abordagens de complexidade e aprofundamento crescentes. Evita-se propositadamente abordar um tema ou um autor (pelo menos os mais importantes) de uma vez por todas e sem a ele voltar. Pode haver aqui uma perda da visão da sistematicidade do pensamento dos grandes autores, mas é questionável a própria ideia de que cada autor medieval tinha o seu “sistema”, como sabemos esse resulta mais da reconstrução dos historiadores modernos e contemporâneos (influenciados pelo desejo de sistematicidade que lhes é próprio), que da própria expressão e intenções dos autores medievais. Simultaneamente a uma discussão mais contextual de cada tema, é possível deixar para etapas posteriores o aprofundamento temático e o estudo de épocas e autores, ficando para a disciplina de Filosofia Medieval I uma função eminentemente introdutória, centrada na transmissão de aspectos históricos e do perfil de alguns temas filosóficos caracterizadores deste período da história do pensamento.
O ensino da Filosofia Medieval integra a licenciatura em Filosofia desde a restauração da Faculdade de Letras da UP em 1961 (DL 43864/1961 de 17 de Agosto). Designava-se então História da Filosofia Medieval. Após 1974 e na reestruturação curricular de 1978 (DL 53/1978 de 31 de Maio) ocorre uma importante alteração: a disciplina perde o apelativo “História da”, passando a designar-se apenas Filosofia Medieval. Nome que não mais perderia nas reestruturações seguintes (cfr. Portaria 850/87, de 3 de Novembro, na sequência da criação do Estágio do Ramo de Formação Educacional Portaria 659/88, de 29 de Setembro) e que as mais recentes revisões curriculares mantiveram. Esta alteração revelou-se da maior importância e dela se tem tirado partido nos sucessivos programas propostos, acentuando-se progressivamente uma abordagem temática e problematizadora, em detrimento da simples didascálica cronológica, mas evitando-se sempre a abordagem an-historicizadora dos autores medievais, na convicção de que a compreensão do sentido filosófico do seu pensamento sai enriquecido quando inseridos no seu próprio contexto.
As sucessivas e periódicas alterações dos planos de estudos, centradas sobretudo na estrutura dos cursos, não conseguiram, contudo, alterar certas dificuldades específicas com que se defrontam professores e estudantes, embora as possam ter mitigado. No caso da Filosofia Medieval, essas são particularmente negativas e limitadoras:
— desconhecimento generalizado das línguas em que os autores medievais escreveram, agravado pela relativa inexistência de traduções em Português, apesar do seu notável crescimento nos últimos anos, devido ao labor de uns poucos especialistas portugueses e brasileiros;
— reduzido número de horas dedicadas ao estudo, amplificado pela dificuldade na leitura aprofundada de textos filosóficos;
— persistência da imagem negativa da Idade Média, acentuada pela desafeição contemporânea quanto às questões e ao ângulo de problematização caracterizadores dos autores medievais;
— preparação histórico-filosófica inexistente ou pouco consistente;
— falta de treino na busca autónoma de informação;
— contracção excessiva da aprendizagem, adiada em geral para o momento da avaliação final.
No caso desta disciplina, um constrangimento maior são as referidas dificuldades no acesso aos textos dos autores medievais (desconhecimento da língua original; ausência de traduções; reduzidos hábitos de leitura). O centramento científico, didáctico e pedagógico na leitura e comentário de textos pretende suprir, pelo menos parcialmente, estas insuficiências. Dado o trabalho teórico e prático realizado na própria aula com esses textos, que todos, obrigatoriamente, têm que fazer, não se afigura aconselhável o recurso a traduções em outras línguas contemporâneas, porque é desigual a proficiência dos estudantes, seja qual for a língua em causa. Para fugir à excessiva limitação às traduções existentes, foi necessário traduzir alguns textos expressamente para a disciplina, para outros adoptaram-se as traduções disponíveis, parte das quais em português do Brasil, mesmo que para isso seja necessário fazer a discussão ou mesmo correcção da tradução, aquando da respectiva leitura. Aliás, em alguns casos, a discussão destas situações de tradução pode fornecer boas situações de discussão para compreender a importância da compreensão e do papel da interpretação na leitura dos filósofos.
Apesar deste panorama, potencialmente negativo, devem ser mencionadas as condições favoráveis para o ensino da Filosofia Medieval existentes na FLUP, que permitem uma visão optimista quanto à sua continuidade e ao papel positivo que dela advém na formação de estudantes de Filosofia, ou mesmo de outras áreas. De facto, deve ser destacado o lugar de relevo que, ao longo dos anos tem sido ocupado pela Filosofia Medieval na FLUP: desde logo pela existência de duas disciplinas no plano curricular obrigatório, à semelhança do que acontece nos outros cursos do país, mas também pelo funcionamento de um grupo de investigação muito activo (o Gabinete de Filosofia Medieval) e a existência de uma pós-graduação em Filosofia Medieval desde 1984-1985, a qual a partir de 2003 passou a ser uma área de especialização do Curso Integrado de Pós-graduação em Filosofia. A área de especialização mantém-se no plano curricular do 2º Ciclo, Mestrado, que entra em vigor também em 2007-2008. Resultaram daí algumas dezenas de teses de mestrado e quase uma dezena de teses de doutoramento.
A docência marcante de Maria Cândida Pacheco e de José Maria da Costa Macedo permitiu que a Filosofia Medieval granjeasse prestígio e se dotasse de um modelo de abordagem ao mesmo tempo exigente, rigoroso e inovador na compreensão da Idade Média, valorizando a vertente filosófica, mas também voltado para os estudantes. A consulta dos programas de Filosofia Medieval dos últimos anos permite constatar as orientações filosóficas que foram imprimidas à disciplina (onde não deixam de se notar opções dos docentes envolvidos e extensões temáticas ou cronológicas com que os programas foram regularmente actualizados). Por outro lado, a Faculdade disponibiliza aos estudantes bons recursos de estudo individual:
— uma biblioteca geral bem equipada e com um fundo bibliográfico medievístico actualizado e em crescimento (nos últimos 12 anos a Biblioteca deverá ter adquirido mais de 1.500 obras relativas à Filosofia Medieval e aos Estudos Medievais, por proposta do docente da disciplina),
— existência de uma biblioteca especializada (v.g. a biblioteca do Gabinete de Filosofia Medieval, constituída nos últimos 13 anos e que conta agora com centenas de obras da especialidade),
— vastos recursos bibliográficos on-line e em suporte informático,
— organização regular de colóquios e conferências sobre Filosofia Medieval,
— publicação da revista internacional Mediaevalia. Textos e estudos,
— colaboração de docentes de outras Faculdades do país e do estrangeiro,
— dinamização e participação em projectos de investigação científica nacionais e internacionais,
— acordos de mobilidade docente e discente com uma dezena de universidades,
— participação no curso de pós-graduação internacional Diplôme européen d’études médiévales, que funciona em Roma,
— crescente nível de colaboração com outros cursos de pós graduação da Faculdade de Letras (nomeadamente das áreas da Literatura e da História medievais).
Não menos importante para o perfil da disciplina e o recorte temático que opera, é a liberdade académica e científica que caracteriza o Departamento de Filosofia da FLUP, a qual deve ser mencionada a par da coordenação entre disciplinas/docentes no plano horizontal e transversal, que tem sido posta em prática nos últimos anos e que procura garantir a articulação entre modelos de ensino e um inter-conhecimento dos temas e programas leccionados.
Neste quadro geral, o ensino que aqui se propõe da Filosofia Medieval persegue uma orientação múltipla:
Potenciando os conhecimentos já consolidados de estudantes de 2º ano de uma licenciatura e numa perspectiva diacrónica, poderia orientar-se a atenção dos estudantes para a análise comparativa do modo como os problemas medievais tinham sido (ou não) formulados no pensamento antigo, despertando-os para, mais tarde, estudarem os autores renascentistas ou modernos verificando o modo como reorientam, modificam ou reinventam as formulações propostas pelos autores medievais. A comparação ou o paralelismo com outros períodos pode ilustrar que os pensadores de um tempo e contexto não serão compreendidos de modo conveniente se forem pensados apenas através dos critérios de outra época. Ou seja, a experiência de contacto com a Filosofia Medieval deve permitir compreendê-la no seu contexto histórico, evitando os anacronismos de interpretação, mas sem que isso conduza a resultados antagónicos, como a ilusão de estarmos perante uma philosophia perennis, contrariada pela própria sobrevivência da discussão dos problemas, ou a qualquer espécie de relativismo trans-histórico em que tudo se equivaleria e todos os curto-circuitos e sobreposições epocais seriam legítimos. Cada tema a explorar poderia ilustrá-lo. Por exemplo, no contexto dos autores cristãos latinos do século XIII não é o mesmo discutir e compreender a felicidade antes ou depois da tradução da Ética a Nicómaco de Aristóteles; as discussões em torno da questão da unidade/unicidade da alma não são compreensíveis sem ter presente o modo como é recebida e evolui a interpretação da obra de autores como Avicena e Averróis no contexto da Faculdade de Artes; as discussões sobre o objecto da metafísica não são compreensíveis fora da intersecção da recepção do peripatetismo arabo-persa, v.g. da obra de Avicena, e das discussões teológicas acerca da cognoscibilidade de Deus; não é compreensível a reorientação dos modelos de organização das ciências, ocorrida no século XIII, sem a inserir no contexto da Universidade e da prática do comentário de textos e da legitimação da sua autoridade. E os exemplos poderiam desmultiplicar-se extensamente a outros momentos e domínios da Filosofia.
Compreender um autor do passado exige também estar atento a de onde vêm os seus problemas, porquê e como são formulados, como é que o próprio situa a sua resposta face ao passado, bem como verificar com que autores dialoga, que fontes reivindica, ou omite, ou rejeita, que novidade traz o seu pensamento. Ou seja, numa perspectiva de história da Filosofia, um autor do passado deve ser analisado nos seus próprios termos e conceitos (embora haja aqui limitações poderosas para o conseguirmos de um modo adequado), sem que isso nos obrigue a uma eterna e estéril paráfrase que se limitasse a repetir o dito. Embora não seja assim que discutimos com os nossos próprios contemporâneos, por incapacidade de distanciamento, compreender um autor nos seus próprios termos é o melhor modo de aprender o descentramento, de olhar o outro, de perceber a novidade, de escutar o já dito mas nunca escutado, porque não há filosofia sem autores e sem um tempo em que pensam.
O passado da filosofia não deve ser nostalgicamente praticado como uma alternativa do presente, mas pode fornecer-nos os instrumentos, a endurance, o exemplo e o treino para abordarmos de modo diverso o presente e o futuro da Filosofia. A Filosofia Medieval, pelos pré-conceitos de rejeição a que está associada na cultura popular, pode mesmo fornecer um campo privilegiado para esta aprendizagem. A “Filosofia Medieval” acrescenta “filosofia” à “Idade Média”, uma etiqueta histórica e ideológica muito discutida, que, afinal, afecta tudo em que toca.
E a “Idade Média” não pode ser dissociada das razões que estão na origem do nome, da periodização que cabe ao nome, do modo como se descontinuam as ideias sobre ela feitas. Deve até ter-se presente que a filosofia e a teologia, ou melhor, o método escolástico de discussão e argumentação que estas ciências praticavam no âmbito da universidade, são uma das fortes razões de distanciamento que provocaram em homens inspirados por outro humanismo. É no Renascimento (que, como se compreende cada vez melhor, não parece ser senão a Idade Média com outro nome) e para assinalar a consciência infeliz que o período anterior representava, que vai sendo cunhada a expressão Media aetas, ou Medium aevum, ou semelhantes. O conceito de “Idade Média” é forjado a partir das diversas expressões (media aetas, media tempora, media tempestas) com que os humanistas dos séculos XV-XVI designam esse tempo de interregno civilizacional entre o seu próprio presente e a antiguidade clássica que o tempo moderno pretendia recuperar. Conceito difuso, correspondem-lhe diversas delimitação cronológicas possíveis (entre a conversão de Constantino e a Reforma, entre a queda do Império romano do Ocidente e a queda do Império romano do Oriente, etc.), que, sendo sempre puramente convencionais, dependem de critérios exteriores à própria “Idade Média”, mas têm a vantagem de proporcionar uma repartição do trabalho científico (De Rijk) e, nesse sentido, podem também servir-nos de modo operativo. Antes de no século XVII se fixar a forma medium aevum (idade média, middle ages, moyen age, ettà di mezzo e depois medio evo em italiano; cfr. Sergi:p.13-14), outras formulações tinham já ocorrido desde que Petrarca [Sobre Petrarca e a Idade Média: A. de Libera, «Pétrarque et la romanité», in C. Menasseyre – A. Tosel (dir.), Figures italiennes de la rationalité, Éd. Kiné, Paris 199fg7, pp. 7-35.] e Boccaccio no século XIV (portanto ainda em plena Idade Média, qualquer que seja o critério cronológico usado) expressaram repetidos lamentos porque a aetas nostra ou o evo nostro perdeu os livros da antiguidade ou tarda em por fim ao exílio das letras clássicas [cit. em Viti,pp.45-6]. O desgosto dos humanistas por esta época explica-se pelo seu desprezo das técnicas de argumentação (é um facto que muitos autores fizeram a sua apologia, em defesa da produtividade da razão para chegar à verdade) [cfr. sua apologia no texto 4, de Abelardo] aprendidas em súmulas de lógica e repetidas na discussão de questões e no comentários de obras sem qualquer primor literário, como eram agora julgadas as de Aristóteles e seus epígonos face ao redescoberto e revalorizado Platão, com a agravante de aquelas apresentarem um latim pouco elegante a ouvidos formados na escola da poesia, ou mesmo deplorável no caso das traduções realizadas a partir do árabe (mas já o muito escolástico Rogério Bacon em pleno século XIII o lamentara). Os “manuais da escola” e o “vício de uma dialéctica anquilosada” não entusiasmavam espíritos que exercitavam o bom gosto como característica do humano. Assim se explicam os contínuos esforços de distanciamento conceptual e prático em relação a uma época que se pretendia esquecer e fazer esquecer, objectivo primeiro do conceito de Idade Média. O bispo Giovanni Bussi em 1469, no elogio do cardeal Nicolau de Cusa, fala de uma media tempestas [Scotti:p.143]. Joaquin Watt em 1518 usa media aetas, Adriano Junius em 1588 fala dos mediae aetatis scriptores, Melchor Doldast usa medium aevum em 1604 e Gilbert Voet intermedia aetas em 1644 [Saranyana,p.25, n. 4]. Será Christoph Keller ou Cellarius (1638-1707) que, na sua obra publicada em 1688, Historia Medii aevi, vulgarizará a expressão delimitando-a entre as invasões bárbaras e a queda do império romano do oriente (c.400?-1453), delimitação que procurava realçar a homogeneidade deste longo período, que se teria caracterizado pela decadência de todos os domínios de civilização e a instauração de uma verdadeira fé fundada na revelação [Scotti:p.143]. Embora de formação lenta, a expressão continha um efeito descritivo fortíssimo, abrangia todos os âmbitos da acção humana e tornava-se marco separador na tripartição das eras da história universal.
Mesmo sem lhe dar um nome, o período, ou pelo menos o que dele sobrevivia nas práticas dos teólogos do século XVI, é causticamente descrito por Erasmo de Roterdão, que conclui uma descrição das suas questões (irónica, como a de Voltaire que a seguir se citará, embora as motivações de ambos sejam exactamente opostas), com estas palavras:
« O traço de um labirinto é menos complicado que os tortuosos desvios dos realistas, nominalistas, tomistas, albertistas, ocamistas, escotistas e de tantas seitas só cito as principais. A erudição desta gente é tanta, tantas são as dificuldades que eles apresentam que os próprios Apóstolos teriam que receber outro Espírito Santo para discutirem esses assuntos com os nossos teólogos ». Erasmo de Roterdão, Elogio da loucura, trad. A. Ribeiro, Guimarães ed., Lisboa (2ª ed.) p. 101.
Com o iluminismo radicaliza-se a crítica das práticas filosóficas da Idade Média, ou da sua sobrevivência. No Essai sur les moeurs et l’esprit des nations Voltaire até está bem informado sobre os problemas discutidos no final da Idade Média mas é ácido e ridicularizador com as argúcias dos pensadores:
« On passa, dans ce treizième siècle, de l’ignorance sauvage à l’ignorance scolastique (…). Les études scolastiques étaient alors et sont demeurées, presque à nos jours, des systèmes d’absurdité tels que, si on les imputait aux peuples de la Taprobane [sc. de Ceilão e de Java], nous croirions qu’on les calomnie. On agitait “si Dieu peut produire la nature universelle des choses et la conserver sans qu’il y ait des choses; si Dieu peut être dans un prédicat, s’il peut communiquer la faculté de créer, rendre ce qui est fait non fait, changer une femme en fille; si chaque personne divine peut prendre la nature qu’elle veut; si Dieu peut être scarabée et citrouille; si le père produit son fils par l’intellect ou la volonté, ou par l’essence, ou par l’attribut, naturellement ou librement”. Et les docteurs qui résolvaient ces questions s’appelaient le Grand, le Subtil, l’Angélique, l’Irréfragable, le Solennel, l’Illuminé, l’Universel, le Profond ». (Voltaire, Essai sur les moeurs et l’esprit des nations et sur les principaux fais de l’histoire depuis Charlemagne jusqu’à Louis XIII, Paris 1756, ed ut.: Oeuvres complètes, Paris 1867-1870, vol. II, p. 142).
Nestas palavras vemos que afinal a Idade Média ainda se prolonga para lá dos seus limites, até aos dias de Voltaire, e é tarefa do espírito das luzes e mesmo da Enciclopédie aniquilá-la definitivamente. É certo que Voltaire, incomodado ou pouco sensibilizado com as subtilezas da grande questão da omnipotência divina absoluta ou ordenada, lê estes medievais através da neo-escolástica sua contemporânea, enquanto que outros autores identificados com o iluminismo tentarão uma diversa leitura de textos e pensadores, como o faz Pierre Bayle no seu Dictionnaire historique et critique de 1740, que insere cerca de 120 artigos sobre matérias medievais, o que Voltaire também lamentará. Não está ainda aí em germe a nossa Idade Média, mas desponta uma outra atenção às diferenças entre os autores e à natureza das suas discussões, de que resultará uma imagem progressivamente positiva e distanciada do pensamento medieval. Ao mesmo tempo é empreendida a publicação de grandes compilações documentais ou de textos históricos (cfr. Mauristas, Murattori, etc.) que progressivamente criarão a possibilidade de um conhecimento mais erudito e detalhado da época, que será olhada com interesse revivalista em aspectos arquitectónicos ou culturais, como os valores da ética e poeticidade aventureira do mundo cavaleiresco, que o romantismo (séc. XVIII) explorará sobretudo na literatura.
Mesmo assim, os traços que caracterizam a Idade Média são sempre depreciativos: sombria, fechada, dogmática, censória, clerical, violenta, miserável. Em Filosofia, num deslizamento por assimilação, os conceitos “escolástica” e “medieval” tornam-se até sinónimos. O poder falsificador dos estereótipos é prenhe de consequências, não apenas pela redução de realidade que deles resulta, mas sobretudo pela sua capacidade de influência e de sobrevivência.
A erudição do século XIX, após a emergência da História da Filosofia como tema filosófico na sequência da obra de Hegel e do idealismo alemão, inicia uma definitiva inversão, porque em consequência da redescoberta de textos que impõem novas leituras a edições antigas e a necessidade de substituir muitas delas a partir do leitura dos próprios manuscritos para aceder aos textos não editados, se ganha um conhecimento mais directo da época, o qual, por sua vez, desadequará progressivamente antigas etiquetas. Lenta mas progressivamente será desconstruída a própria grelha de utilização que os seguidores, por exemplo os denunciados por Erasmo, tinham imposto à obra dos próprios autores que pretendiam seguir. Essa mudança é visível na historiografia da medievística filosófica francesa do século XIX (sobre o que segue, cfr. J. Jolivet, «Les études de philosophie médiévale en France de Victor Cousin à Étienne Gilson», in R. Imbach – A. Maierù, cur., Gli studi di filosofia medievale fra otto e novecento, Ed. di Storia e Letteratura, Roma 1991), mas desenvolvimentos paralelos poderiam ser encontrados em outras tradições como a italiana ou a alemã (cfr. estudos na mesma obra). Victor Cousin no Cours de philosophie de 1818 ainda via apenas dois períodos verdadeiramente distintos na história da Filosofia e do mundo: a época antiga e a época moderna, em que o génio grego «se extinguiu pouco a pouco na noite da idade média», sendo com Descartes que, no século XVII, começa uma nova época lentamente gerada nos séculos XV e XVI. Já no volume III dos seus Fragments philosophiques, sub-titulados Philosophie scholastique, onde a época medieval é já um período da história da filosofia com uma dinâmica intrínseca cuja “infância” situa nos séculos XI-XII, a época de “virilidade” nos séculos XIII-XV e o “declínio” nos séculos XV-XVI. É com a metáfora das idades do homem que a Idade Média começa a ser revalorizada, mas o contributo principal de Cousin situa-se na edição crítica das obras inéditas de Pedro Abelardo (1836, 1849 e 1859), merecendo, sobretudo por essa razão, o título de fundador dos estudos de filosofia medieval em França, que no seu século contava já com diversos cultores, v.g. Charles Jourdain, Barthèlemi Hauréau (que publicou em 1872 e 1880 a sua Histoire de la philosophie scholastique em três volumes), Ernest Renan (com o marcante Averroès et l’averroïsme. Essai historique, publicado em 1852). Seria François Picavet a pôr em destaque a pluralidade intrínseca do pensamento medieval logo no próprio título das suas duas obras mais importantes: o Esquisse d’une histoire générale et comparée des philosophies médiévales (1905, 2ª ed. em 1907) e os Essais sur l’histoire générale et comparée des théologies et des philosophies médiévales (1913), onde se começam a esboçar tentativas de romper os estreitos limites em que a filosofia medieval estava encerrada, quase restringida a uma longa glosa de Aristóteles e centrada no único problema dos universais. Outros temas e outras fontes eram aí valorizadas, inserindo-os também na dinâmica da histórica e das escolas, apesar das limitações da documentação disponível. Seria Étienne Gilson (1884-1978) que em França, mas também no Canadá e nos Estados Unidos, onde ensinou durante décadas, a trazer aos estudos de Filosofia Medieval reconhecimento académico na universidade pública e um novo fôlego, nas várias dezenas de livros e mais de uma centena de importantes artigos que lhe dedicou. A sua mais permanente orientação na leitura dos autores que estudou ia para a identificação dos respectivos “princípios fundadores”, que valorizava ainda mais que “as articulações explícitas”, como modo de sublinhar a coerência que liga as diferentes partes de uma doutrina (cfr. Jolivet, art. cit. p. 16). Essa tendência é também de certa maneira projectada na leitura que faz de todo o período, tentando identificar e descrever «o espírito da filosofia medieval» (cfr. a obra L’esprit de la philosophie médiévale, Paris 1932), espécie de meta-sistema que abarcaria e daria uma distinta consistência ao pensamento dos principais autores e que Gilson designou como “filosofia cristã” (cfr. a sua History of Christian Philosophy in the Middle Ages, de 1955), que estaria marcada, após o século XIII, por uma reelaboração do aristotelismo a partir do Evangelho (mas não o contrário) e que encontra no teólogo Tomás de Aquino o seu mais elevado representante e um momento de unificação, que os tempos sucessivos não saberiam continuar, enveredando por uma decadente dissolução de laços entre a razão e a fé [cfr. Cantor, p. 331], com a emergência do sujeito, que seria a característica maior da modernidade cartesiana, em marcha para um crescente relativismo e abandono do absoluto. É sob o signo da leitura do encontro entre o eixo da filosofia grega e o eixo da teologia (relembrando que os contributos filosóficos mais significativos foram precisamente de teólogos), que Gilson reconstrói a Filosofia Medieval, porque não vê esse encontro como uma esterilização da filosofia, mas sim a oportunidade para elevar a uma nova vida e conduzir a especulação a resultados filosóficos positivos (cfr. a conclusão da History of Christian Philosophy, cit.). Esta perspectiva suscitará uma dupla polémica, a propósito da noção mesma de “filosofia cristã” e entre os medievistas, que contestam o modo particular de indissociar as relações entre fé e razão absolutizando o pensamento particular de Tomás de Aquino.
Paul Vignaux, querendo mostrar os limites de fórmulas unificadoras na apresentação do pensamento medieval, propõe uma metodologia mais adequada à evidenciação da polimorfia que atravessa a Idade Média intelectual:
« O historiador que recebeu uma formação filosófica deve recear unificar em demasia, sistematizar, deve [antes] permitir que as diversidades rebeldes se revelem. Além disso, durante a sua exposição não deve dar a impressão de que dispõe de uma certeza homogénea ». (P. Vignaux, A Filosofia na Idade Média, trad. da 2ª ed., Lisboa 1994, p. 53; ed. original, Paris 1958).
O conceito que Vignaux forja tem um alcance programático: desalojar um certo tomasianocentrismo, dissolvendo a imagem corrente de uma Idade Média uniforme e dominada por determinadas posições doutrinais ou que para elas tenderiam inexoravelmente. De facto, outro modo de frequentação de um leque mais alargado de autores, a recuperação de textos até aí negligenciados, o agenciamento das práticas intelectuais nos seus contextos institucionais e político, mostram que o pensamento na Idade Média não é monótono e teleológico como a tradição o vinha interpretando. A própria historiografia desde finais do século XIX lentamente recuperara a real diversidade de um período demasiado longo da história para ser subsumido numa fórmula que revelasse “a sua essência” (por exemplo, “pensamento escolástico”, “filosofia cristã”, “filosofia do período cristão” são descrições utilizadas em títulos de livros). Estas constatações acabam por subverter a visão da filosofia medieval como irresistivelmente orientada desde o seu início para a constituição da uma síntese realizada com o pensamento de Tomás de Aquino. Na sua linearidade este esquema servia também para explicar como esse período sofrera um movimento de decadência durante a escolástica universitária dos séculos XIV-XVI, por acção dos críticos ou dos que propunham teorias que desafiavam aquele pensamento (ver, p. ex., a entrada «Scolastique» do Dictionnaire de théologie catholique, vol. XV, col. 1691-1728 e a crítica que lhe move L.M. de Rijk, La philosophie au Moyen Age, trad., Leiden 1985, pp. 15-16 e 20-21). Diga-se que a superação desta visão teleológica da história, com uma linha ascendente que após atingir o cume deriva numa outra de decadência, contou também com a colaboração de alguns dos seus mais eminentes promotores, como Martin Grabmann (cfr. Mittelalterliches Geistesleben. Abhandlungen zur Geschicte der Scholastik und Mystik, 3 vol., München 1926, 1936, 1956), Étienne Gilson ou Fernand van Steenberghen (cfr. La philosophie au XIII.e siècle, Louvain la Neuve – Louvain 1991, 1ª ed. Paris 1966), cujas histórias da filosofia medieval, apesar da centralidade nelas ocupado por Tomás de Aquino, aí diversamente interpretado como é sabido (FUNDAMENTAR), traziam à consideração um conjunto de autores e problemas descobertos em textos inéditos e em géneros antes pouco valorizados, os quais escapavam a essa visão unificadora e revelavam uma riqueza de posições e uma dispersão disciplinar em contraste com aquela visão finalista da história do pensamento.
Algumas das categorias historiográficas mobilizadas pelos mesmos historiadores (“escolástica”, “metafísica do êxodo”, “augustinismo avicenizante”, “averroísmo latino”, “aristotelismo heterodoxo”, “aristotelismo radical”, etc.) seriam até motivo de aprofundamentos que globalmente questionaram a sua pertinência, por inadequação aos fenómenos que queriam descrever, ou porque a sua generalização não era tão extensa como pretendiam.
A busca do objecto “filosofia medieval” leva por isso a outras possibilidades historiográficas, como a tentativa de isolar a filosofia no interior de textos que na origem seriam de teologia, onde, portanto, a filosofia teria a sua autonomia:
« le sens de l’expression “philosophie médiévale” est essentiellement problématique, si l’on cherche à l’interpréter dans l’horizon des médiévaux eux-mêmes. En outre, ceux-ci sont des théologiens, dans leur immense majorité. L’historien de la philosophie devra donc chercher à dégager de leurs écrits des concepts, des structures, des méthodes qui, liés étroitement à une intention et à un contenu théologiques, en sont relativement indépendants ». (J. Jolivet: La philosophie médiévale en Occident, em B. Parain (dir.), Histoire de la philosophie, vol. 1, Paris 1969, p. 1199).
Se a metodologia se podia mais uma vez mostrar parcial, levou mesmo assim a procurar saber de modo mais minucioso como é que os medievais entendiam eles próprios a filosofia. A multiplicidade emerge mais uma vez, como se constata nas actas do congresso que em 1997 foi explicitamente dedicado ao tema (cfr. J.A. Aertsen – A. Speer (Hrsg.), Was ist Philosophie im Mittelalter? Qu'est-ce que la philosophie au moyen âge? What is Philosophy in the Middle Ages?, Berlin-New York 1998). Não se têm em conta apenas novos modos de abordar os textos, mas há também novos textos aos quais agora e dá atenção. É por fim possível abordar a Filosofia Medieval sem lhe impor uma grelha pré-formatada, mas procurando compreender como é que os medievais mesmos entendiam a Filosofia e a faziam. É essa uma das tarefas actuais da História da Filosofia Medieval.
À fadiga dos modelos interpretativos, que pressupunham a existência de categorias intelectuais trans-históricas cristalizadas numa philosophia perennis, contrapõe-se a paciente e revigorada abertura dos estudos sobre filosofia medieval à publicação e ao estudo de fontes impropriamente chamadas menores, mas sobretudo a convicção sobre a historicidade do pensamento durante a Idade Média, que não prescinde de compreender a sua ancoragem numa sociedade, numa cultura, nas práticas materiais e intelectuais e num tempo precisos que o acondicionam (cfr. o já citado R. Imbach – A. Maierù (cur.), Gli studi di filosofia medievale fra otto e novecento, Roma 1991; ou K. Flash, Introduction à la philosophie médiévale, trad., 1992). Nesta “nova Idade Média” não assistimos a uma captura da ratio pela fides, ou vice-versa, nem ao esvaimento da ratio no confronto de autoridades, mas verificamos a pervasão mútua entre as ciências, a mística, a metafísica, a teologia, a ética, a arte, a política sob a égide de uma ratio discursiva e activa, num continuado esforço de compreensão dos mais variados aspectos e problemas da acção humana, da sua inserção no mundo e da sua relação com o transcendente e o ser.
Esta conclusão não nos deve iludir, porque não há uma filosofia da Idade Média. Como escreveu Tullio Gregory a propósito das aquisições da então recente historiografia filosófica medieval:
« (...) non si può parlare di una filosofia, ma di filosofie, non di una teologia ma di teologie e che la stessa dicotomia filosofia-teologia non è una costante del pensiero medievale, ma solo il modo determinato secondo il quale, in certi precisi contesti e momenti storici, si pone il rapporto fra esperienze di pensiero diversi ». (T. Gregory, «Conclusione», em R. Imbach – A. Maierù (cur.), Gli studi di filosofia medievale fra otto e novecento, cit., Roma 1991, pp. 391-392).
A “filosofia medieval” perde definitivamente o seu centro, nem temático, nem cronológico, nem autoral. É nesta perspectiva que radicam os mais estimulantes estudos actuais sobre a “filosofia medieval”, que procuram nos detalhes, nas diversidades rebeldes como lhes chamava Vignaux, apreender o plural e a alteridade que caracterizam a filosofia, também na Idade Média. É patente que nas últimas décadas têm sido propostas novas formas de ver e de valorizar para nós a Filosofia Medieval. A tradição analítica acrescenta-lhe uma outra perspectiva: o diálogo explícito com a filosofia contemporânea. Na seminal The Cambridge History of Later Medieval Philosophy (Kretzmann, N. – A. Kenny, A. – J. Pinborg, (eds.), Cambridge, 1982) os editores declaravam: «é parte do nosso objectivo apresentar a tradição aristotélica medieval e as inovações escolásticas que se desenvolveram nesta tradição» (p. 2), daí o subtítulo dessa monumental obra: From the Rediscovery of Aristotle to the Disintegration of Scholasticism 1100-1600. Para além desta tão selectiva parcelarização do objecto, recentrado na filosofia aristotélica, os editores assumiram uma outra opção, esta metodológica e de escola: «concentrar-se nas partes da filosofia medieval tardia que são mais facilmente reconhecidas como filosofia por um estudante de filosofia do século XX», afirmando que a opção é mesmo orientada «pelas perspectivas e interesses dos filósofos contemporâneos, em particular os que trabalham dentro da tradição analítica» esperando com isso «apresentar a filosofia medieval num modo que ajude a acabar com uma era em que ela foi estudada num gueto filosófico». Ou seja, este analytical turn na História da Filosofia Medieval pretendia libertá-la. Dando expressão ao melhor da tradição analítica, os editores abdicam expressamente da perspectiva cronológica, preferindo organizar a obra «em torno de tópicos filosóficos ou disciplinas, mais do que de filósofos». A obra teve e tem uma importância enorme na medievística filosófica pelas vias que inaugurou e porque, em parte, conseguiu o seu intento ao retirar a Filosofia Medieval do tal gueto, ou pelo menos abriu-o, porque hoje o interesse e o dinamismo historiográfico do “mundo anglo-saxónico” em torno da Filosofia Medieval (nem todo ele de tradição analítica, lembremo-lo) não tem paralelo em qualquer outra língua. Como exemplo da sua posteridade metodológica vejam-se os recentes volumes sobre Agostinho, Anselmo, Abelardo, Tomás, Duns Escoto, Ockham, incluídos na série Cambridge Companions to Philosophy, esperando-se outros. Esta obra teve e tem uma importância notável, embora nos possa parecer agressiva nas suas propostas metodológicas e mesmo parcial nos resultados, o menor e menos criticável dos quais não é seguramente o facto de (nem sempre, é certo) praticar a descontextualização dos próprios autores, centrando-se por vezes em excertos de textos dos quais nem mesmo é considerado o problema particular para o qual foram escritos, sendo seleccionados e discutidos pelo eventual interesse para as discussões da filosofia contemporânea. Esta tendência foi mitigada pelo prolongamento editorial desta história da filosofia medieval, concretizado numa série de volumes temáticos de tradução de textos filosóficos, intitulada The Cambridge Translations of Medieval Philosophical Texts, tendo já sido publicados 3 volumes: Logic and Philosophy of Language (1988, II: Ethics and political philosophy (2001), III: Mind and knowledge (2002) e parece que o será ainda mais na segunda edição, totalmente reformulada sob a direcção de R. Pasnau, que se anuncia para 2008.
Contudo, esta não é a única perspectiva metodológica actualmente influente (veremos a seguir as críticas que lhe têm sido dirigidas do interior da própria tradição analítica, por exemplo por J. Marenbon). Um pouco contra aquela tradição, em cuja empresa também participou com um capítulo, mediada por um debate com Claude Panacio, Alain de Libera (cfr. A. de Libera, «Le relativisme historique: théorie des “complexes questions-réponses” et “traçabilité”», Les études philosophiques (1999) 479-494) tem insistido na importância dos “complexos questões respostas” (fórmula que foi buscar a R.G. Collingwood), que integra mesmo nos fundamentos do seu relativismo histórico, contrário à crença realista na existência de “problemas filosóficos permanentes” ou “eternos”, o qual implica uma solução relativista do problema da verdade, porquanto esta é historicamente situada. Recusando o isolamento dos textos, de Libera tem insistido na prática da investigação em história da filosofia sobre corpora textuais extensos, com resultados que se têm evidenciado nas suas obras recentes e nas de discípulos, publicadas na colecção “Sic et non” (Vrin, Paris). Esta metodologia procura ser mais atenta à novidade e desfaz a crença, comum em história da filosofia, na existência de um continuum problemático-doutrinal apenas porque em determinadas teorias se usam os mesmos conceitos, sem que os historiadores se apercebam que, apesar dessa coincidência de superfície, de facto o problema a que diferentes autores estão a responder é também diferente, o que torna as doutrinas incomensuráveis entre si. O rastreio (traçabilité) de uma teoria ou conceito acentua a individualidade da sua inserção histórica num contexto filosoficamente saturado (no sentido químico do termo): nem a deixa estranha, nem a torna actual.
A reacção ao modelo analítico, chega também de dentro. John Marenbon, fellow do Trinity College de Cambrige, tem criticado o método analítico essencialmente por ignorar a posição histórica de cada autor ou texto, e por insistir nesse diálogo com a filosofia contemporânea. Marenbon prefere a perspectiva do que chama “análise histórica” porque recorre aos elementos positivos do chamado método analítico (como a decomposição analítica dos argumentos, mesmo a ligação à filosofia contemporânea, embora saiba que os textos medievais não são um pronto a vestir para os problemas filosóficos contemporâneos e que, por isso, não se devem projectar neles as concepções contemporâneas, para além de notar que os filósofos contemporâneos pouca importância parecerem dar à filosofia medieval nas suas investigações ou discussões), não para reconstruir os argumentos medievais em termos actuais, mas sim para trazer à luz aspectos que não coincidem com aquela interpretação. Marenbon propõe, por isso, combinar a “análise” com a “contextualização-para a compreensão”, que por isso, não pode ignorar a história (cfr. cap. V de J. Marenbon, Le temps, l’éternité et la prescience de Boèce à Thomas d’Aquin, Vrin, Paris 2005, obra recente onde, com o referido método, procura desconstruir o erro das interpretações analíticas tradicionais sobre a presciência em Boécio e em Tomás).
Fale-se de excertos ou de corpora, de genealogia ou de análise, na historiografia medievística contemporânea é o texto que ocupa o centro da discussão. A fonte histórica pela qual a história da filosofia se interessa em primeiro lugar são os textos, não tanto a doxografia. Depois da aquisição definitiva sobre a diversidade intrínseca das filosofias medievais agora são as obras, são os textos (anónimos ou com autor) que lhe dão corpo. Daí também a importância da discussão sobre o modo como devem ou podem ser lidos. A redescoberta da Filosofia Medieval está ainda em curso, porque a situação é substancialmente diferente da de todos os outros períodos. Todos os textos da antiguidade grega e latina estão hoje disponíveis em edições e em boa parte traduzidos para as grandes línguas. Mesmo para o período patrísticos os textos estão editados e na sua maioria vezes traduzidos. Para os filósofos do período moderno e contemporâneo é marginal e mesmo comparativamente ínfimo o número de textos importantes apenas acessíveis em manuscrito. A situação do acesso aos textos medievais é completamente diferente. Embora a quantificação seja difícil, é sabido que apenas uma percentagem muito pequena da literatura filosófica medieval está editada e uma parte ainda mais pequena está disponível em edições críticas, sendo ainda mais pequena a parte disponível em traduções que alarguem o público leitor de Filosofia Medieval (The Cambridge translations of medieval philosophical texts. Vol. I: Logic and Philosophy of Language, ed. by N. Kretzmann – E. Stump, Cambridge University Press, Cambridge 1988, p. I. RECOLHER MAIS DADOS). A ancoragem da história da filosofia medieval nos textos foi caracterizada de modo estimulante por Alain de Libera:
« L’histoire de la philosophie est une discipline scientifique qui, par son type d’activité, relève de l’histoire, et, par la nature de son objet, de la philosophie. L’histoire de la philosophie médiévale est conforme à cette description. Elle a, cependant, sa physionomie propre. Pour deux raisons: premièrement, son objet n’est pas donné, ni même seulement construit, mais, littéralement, “en voie de constitution”, deuxièmement son ancrage dans l’histoire et les sciences auxiliaires de l’histoire est plus forte qu’en d’autres domaines de l’histoire de la philosophie ». (A. de Libera, «Le relativisme historique: théorie des “complexes questions-réponses” et “traçabilité”», Les études philosophiques (1999) fasc. 4, pp. 479-494, cfr. p. 479).
Daí a necessidade de recurso a uma série de ciências históricas auxiliares, como a paleografia, a codicologia a ecdótica, para o acesso aos textos. Obviamente em Filosofia Medieval I não se estudarão textos em manuscrito, mas deve estar sempre subentendido que o seu objecto está de facto “em vias de constituição” e assim permanecerá por longos anos, enquanto não for mais extenso o conhecimento (e a disponibilidade em edições impressas ou electrónicas, mas legíveis) dos textos medievais que subsistem e até hoje nunca foram estudados nem editados. Convém tê-lo presente para acentuar a necessidade de abandono de todas as perspectivas fixistas quanto ao que é ou não é filosofia na Idade Média.
A Filosofia Medieval não só se mostra como múltipla, como a ela podemos aceder através de divergentes metodologias filosóficas, como está em permanente renovação por ainda não termos um conhecimento completo dos seus textos. Retomando pois a orientação múltipla atrás enunciada, o ensino que aqui se propõe da Filosofia Medieval tem em conta essas característica do seu “objecto”, propondo-se oferecer:
O programa que se proporá a seguir e as metodologias didáctico-pedagógicas que o operacionalizam, não resultam da soma de acasos, nem da mera declinação de variantes possíveis, mas são o resultado destas lições da historioragrafia da “filosofia medieval”, de uma prática que se pretende adequada ao objecto de estudo e pertinente para o momento e função que ocupa no plano de estudos, adaptada portanto ao nível etário e de preparação dos estudantes, mas com o fito de a tornar mais exigente e fundamentada.
Para o conseguir, foi necessária uma opção por uma apresentação consistente da Idade Média e de textos e autores que tenham relevância intrínseca mas que também sejam pertinentes tendo em conta a prossecução de estudos. Nesse sentido, e tratando-se de um curso de apenas 22 a 26 aulas de duas horas, tiveram que ser feitas opções drásticas na orientação múltipla que se tem vindo a descrever:
As opções principais prendem-se com a repartição dos temas em diferentes partes do programa, que não são estanques entre si, organizadas para favorecer a didáctica da discussão. Os §§ 1, 2 e 3 procuram realçar alguns dos aspectos que tradicionalmente foram associados à Filosofia Medieval em particular os pares conceptuais fé/razão, autoridade/argumentação, dogma/crítica e a importância das fontes, em particular a patrística, a filosofia antiga, a filosofia árabe; mas também se insiste nos aspectos que a recente historiografia tem valorizado: os renascimentos e as translationes studiorum, as classificações das ciências, a importância das instituições e em particular da Faculdade de Artes, já chamada Faculdade de Filosofia, o papel da discussão, da censura e do controle intelectual no seu interior, etc. No § 4 serão estudados 3 temas centrais do pensamento medieval, para apreensão dos seus argumentos, conceitos e funções, temas esses que foram escolhidos pela sua relevância filosófica e pelo interesse que podem suscitar em estudantes de Filosofia.
No programa proposto, como não poderia deixar de ser para um calendário tão limitado em tempo, ficaram excluídos alguns temas que poderiam ter um tratamento de orientação semelhante à atrás referida, alguns deles a merecerem actualmente um grande interesse por parte dos especialistas. Salientem-se a política, a ética, a estética, a lógica, para se exemplificar apenas com áreas tradicionais dos estudos filosóficos. Se falássemos de autores, também são notórias as ausências, sobretudo da Idade Média tardia, após o século XIII. É essa a riqueza da filosofia e também da Idade Média, oferecer um leque potencialmente inesgotável de perspectivas para a compreensão do homem no mundo, que obriga a uma selectividade drástica. Esta maleabilidade e evidente natureza introdutória do programa é também consentida pelo facto de existir um segundo semestre com continuidade da disciplina (Filosofia Medieval II), onde, a par do aprofundamento, será mais acentuada a perspectiva monográfica.
Na impossibilidade de esgotar num semestre, num ano, ou mesmo num inteiro curso de pós graduação a abordagem introdutória a estes problemas e autores, tem-se optado por rever periodicamente os programas, substituindo temas e textos ou acentuando uns em detrimento de outros. Por isso, cada programa proposto para Filosofia Medieval é um programa, o próximo em que se trabalhará e que contém diferenças em relação ao último leccionado e, certamente, é também diferente do seguinte. De facto, o ritmo e os interesses que em cada ano vão emergindo da dinâmica das lições e da participação dos estudantes, conduz a explorar mais uns aspectos que outros, a procurar novos textos que respondam às dúvidas suscitadas, a explorar conexões que não estavam previstas. Apesar de os programas se manterem quase os mesmos, podem ser muito diferentes no conteúdo da própria leccionação.
Referências bibliográficas
Histórias da Filosofia Medieval citadas: https://ifilosofia.up.pt/meirinhos/accessus/historias_da_filosofia_medieval